quinta-feira, 24 de maio de 2012

O espaço periférico


 
Diante do game como obra hipermidiática não-linear, as condições de navegação impostas ao usuário/gamer nunca foram as mesmas. No princípio eram os games baseados no verbo, em que cenários, personagens e ações eram apresentados na tela como descrições textuais, e deixavam a encargo do jogador, tal como nas narrativas literárias, o esforço em construir a imagem mental dos espaços onde se desenrolavam os seus respectivos eventos. E o verbo se fez pixel, tomando formas visuais gradativamente superiores às antecessoras, reclamando novas funções éticas e estéticas.

Temos visto estudos como The medium of the videogame, de Mark J. P. Wolf (2002), e o mais recente Video game spaces, de Michael Nietsche (2008), que trabalham com o elemento espaço, o primeiro tipificando-o no geral e o segundo abarcando as propriedades perceptivas e de contato com outras linguagens, mas pouco se discute a respeito do espaço como agenciamento de questões sócio-culturais da realidade, ou melhor, do cotidiano. Em nosso trabalho dissertativo “Guerrilha e espionagem em games de ação” percebemos a planta baixa dos ambientes de navegação dos games como espaços de análise sociológica e antropológica.

Através de um percurso argumentativo que passeia pela história da arte e pelas teorias do cotidiano, desenvolvemos o conceito de “espaço periférico”, uma dimensão de contato sócio-antropológico com a realidade exógena aos games analisados (Call of Duty: Modern Warfare 2, Call of Duty: Black Ops e Battlefield 3). Quando ditames exploratórios, parcela da categoria contemplativa da ação, dissecada por Luís Nogueira em Narrativas fílmicas e videojogos (2009), passam a exercer maior influência sobre o gameplay, como pode ocorrer em jogos open world, estamos diante de uma postura metodológica que nos fará enxergar o espaço periférico.

Periferia visual é um conceito da ótica. Portanto, as imagens de canto de olho são para o pesquisador indícios visuais que extrapolam os elementos privilegiados pela técnica renascentista da perspectiva, que nasce com a pintura e permanece na representação dos espaços tridimensionais navegáveis dos games contemporâneos. Some-se a isso a abordagem das teorias do cotidiano, que privilegiam aspectos banais, comuns, rejeitados pela ótica da macrossociologia e teremos então a união entre contributos técnicos e, simultaneamente, teórico-hermenêuticos. Definimos, portanto, o “espaço periférico”, identificado em alguns games, como um lugar mais ou menos delimitado (por vezes difuso), situado fora da rota principal que leva à progressão narrativa do jogo, o qual pode exibir marcas simbólicas extraídas do cotidiano, estocadas às margens das molduras “oficiais” da arquitetura visual dos games.

O próprio procedimento de navegação do jogador diante do game corresponde ao que Gunnar Liestol (apud GOSCIOLA, 2003, p.103) chama de “discurso decorrido”, ou seja, o percurso atualizado pelo jogador diante do todo, que seria o “discurso armazenado” na programação do game (o leitor atento verá que se trata apenas de uma atualização da dicotomia saussuriana entre língua e fala). A ideia da obra aberta, ou da não-linearidade da obra hipermidiática leva-nos a crer que somos donos do próprio nariz dentro do game, resvalando na mesma ilusão de liberdade que possuímos na vida cotidiana. Mas o game designer, o roteirista, todos olham por nós; a imagem percorrida já foi olhada antes e agora nos encara, tal como percebido por Foucault (1999) em sua análise crítica sobre o quadro As meninas de Velásquez.

Os games, assim como todo objeto técnico e tecnológico, possuem um ethos; marcas constitutivas dos sujeitos que os produzem, e têm algo a comunicar. Este estudo, fruto das pesquisas empreendidas no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPB, será publicado muito em breve, lançando novas contribuições ao campo e suscitando debates críticos e desdobramentos.


REFERÊNCIAS


FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

NITSCHE, Michael. Video game spaces: image, play and structure in 3D worlds. Cambridge: MIT Press, 2008.

NOGUEIRA, Luís. Narrativas fílmicas e videojogos. Covilhã: Labcom, 2008.

WOLF, Mark (Ed.). The medium of the video game. Austin, EUA: University of Texas Press, 2002.

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