sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Resident Evil 6: uma leitura




Toda obra ficcional exibe sempre a mesma mensagem em seu frontispício: “esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais terá sido mera coincidência”, um protocolo jurídico para possíveis “coincidências” que possam ferir os direitos de pessoas, costumes e culturas. Apoiados nessa balela, que pode convencer unicamente aos códigos inanimados das leis dos homens, os criadores das obras (escritores, roteiristas, etc.) podem se valer das realidades alheias para configurar ficções que acreditam ser puramente ficcionais.

No entanto, os universos da ficção e da realidade não se apresentam de forma tão unilateralmente oposta. O escritor e educador Gustavo Bernardo (2002, p.82), especialista nas obras do filósofo Vilém Flussser, afirma, inclusive, ancorado nas discussões do referido filósofo que “... se houve um momento em que a ficção era somente uma vírgula dentro da vida das pessoas, hoje parece que a vida tornou-se uma vírgula dentro do parágrafo da ficção...”. Mas como dizer “ficção também é realidade” se a afirmação de um termo é a negação antônima do outro?

A procura por significações ocultas nos objetos artísticos é um importante meio de inquirir do objeto conjeturas a respeito de sua intenção de realidade, o que descamba para as inúmeras problemáticas da interpretação. Durante as décadas de 60 e 70, Umberto Eco defendeu o papel do leitor como “produtor” de significados, muito embora a crítica tenha entendido essa posição como uma licença ilimitada dada ao leitor para a produção de leituras. Eco (2005, p.50) se pronunciou em sua própria defesa demonstrando formas de limitação de tais interpretações, apontando algumas leituras como superinterpretações, ou seja, leituras de elementos e significados que não existem no texto ou que se contradizem diante do todo.

Para ler/jogar um texto/game, o leitor/jogador precisa empreender uma “willing suspension of disbelief” (ISER, 1996), ou seja, uma suspensão voluntária da descrença, fazendo com que o narrador cause em nós a reação de que os eventos estão acontecendo e, simultaneamente, não estão. A posição do crítico (ou analista) de acordo com Bernardo, deve ser a de suspensão da suspensão da descrença, mas sem pular o primeiro nível: o analista precisa ter suspendido a sua descrença para não se tornar funcionário da teoria e, ao mesmo tempo, suspender tal suspensão para não reduzir a sua leitura a algo sem consistência teórica. Agregando  o ler/jogar despretensioso a ferramentas teóricas e à bagagem cultural individual, podemos vislumbrar horizontes conjeturais de leituras possíveis.

Leituras intencionadas de RE6

A série survival horror Resident Evil, conhecida por revitalizar o gênero terror para o universo dos games, nomeadamente a partir da temática dos zumbis, vem jogando com alguns elementos de ordem histórica e social através de personagens, enredos, espaços geográficos, entre outros. Para termos uma ideia, na história de Resident Evil 5, penúltimo game da série, o jogador assume o personagem Chris Redfield, ativista privado que investiga uma pequena cidade africana, foco de contágio de um vírus denominado “Las Plagas”, já mencionado em RE4. Muitas imagens e sequências do jogo, bem como a própria localização geopolítica da trama, falaram a favor de um imaginário racista. Imagens como a de homens negros arrastando uma mulher branca em dada cena do jogo, além de detalhes dos espaços do cenário como excrementos, animais em decomposição, etc., são aspectos que conduziram ondas de protesto internacional contra o jogo. De acordo com o site “gamevicio.com”, em entrevista à revista Computer Games Magazine, Mascahika Kawata, produtor do game, afirmou: “Nós [Capcom] não podemos agradar a todos. Estamos no ramo de entretenimento - não estamos aqui para afirmar a nossa opinião política ou qualquer coisa assim. É lamentável que algumas pessoas tenham se sentido ofendidas dessa forma.".

Parece que confirmamos o aspecto de uma natureza da inimputabilidade dos objetos técnicos de entretenimento digital, discurso próprio dos produtores/desenvolvedores de games. É como se a natureza ficcional do jogo o eximi-se de qualquer responsabilidade sobre supostas interpretações “errôneas”, desconectadas de um contexto ficcional em que vale tudo. A nova do momento é a sequência de abertura de Resident Evil 6 no cenário do personagem Leon S. Kennedy.

Imagem da Adam Benford, presidente dos EUA na trama.
De acordo com o enredo do jogo, estamos em junho de 2013, e o presidente dos Estados Unidos, branco, de nome Adam Benford, decide revelar segredos a respeito dos eventos de Resident Evil 2 (1998, Raccon City) a Leon e sua parceira, Helena Harper. O local onde se encontram sofre um ataque bioterrorista, implicando na infecção do presidente e no consequente sacrifício do mesmo por Leon, uma cena de tensão, desapontamento e abominável desserviço cívico por parte do personagem (Leon tem de matar o presidente para sobreviver e salvar a companheira) – vide vídeo!

Dois caminhos de leitura da sequência: 1. Diante de um comparativo entre a data de lançamento mundial do jogo (2 de outubro de 2012, o que antecede as eleições dos Estados Unidos), e o tempo determinado na narrativa (junho de 2013) pode haver uma insinuação/desejo de que o presidente dos EUA em 2013 fosse justamente o candidato branco (no caso, Romney), ou 2. O ato de matar o presidente branco no game pode simbolizar a derrota do candidato, o que, diante do drama e da comoção dos personagens envolvidos na cena, sinaliza para um possível descontentamento referente a essa derrota.

E depois nos perguntamos: mas afinal de contas, será mesmo que esse produtor tinha alguma intenção quando trouxe para o game esse presidente que deveria morrer com uma bala na cabeça? John Searle (2002, p.8) responde: “A linguagem é derivada da Intencionalidade, e não o oposto”. Na ficção e no entretenimento vale a máxima do Chaves, em que tudo acaba acontecendo sem querer, querendo.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNARDO, Gustavo. A dúvida de Flusser: filosofia e literatura. São Paulo: Globo, 2002.

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução MF.; revisão da tradução e texto final Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ISER, Wolfgang. A arte parcial: a interpretação universalista. In: O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução Johannes Kretschmer. vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1996. p.23-48.

SEARLE, John R. Intencionalidade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O espaço periférico


 
Diante do game como obra hipermidiática não-linear, as condições de navegação impostas ao usuário/gamer nunca foram as mesmas. No princípio eram os games baseados no verbo, em que cenários, personagens e ações eram apresentados na tela como descrições textuais, e deixavam a encargo do jogador, tal como nas narrativas literárias, o esforço em construir a imagem mental dos espaços onde se desenrolavam os seus respectivos eventos. E o verbo se fez pixel, tomando formas visuais gradativamente superiores às antecessoras, reclamando novas funções éticas e estéticas.

Temos visto estudos como The medium of the videogame, de Mark J. P. Wolf (2002), e o mais recente Video game spaces, de Michael Nietsche (2008), que trabalham com o elemento espaço, o primeiro tipificando-o no geral e o segundo abarcando as propriedades perceptivas e de contato com outras linguagens, mas pouco se discute a respeito do espaço como agenciamento de questões sócio-culturais da realidade, ou melhor, do cotidiano. Em nosso trabalho dissertativo “Guerrilha e espionagem em games de ação” percebemos a planta baixa dos ambientes de navegação dos games como espaços de análise sociológica e antropológica.

Através de um percurso argumentativo que passeia pela história da arte e pelas teorias do cotidiano, desenvolvemos o conceito de “espaço periférico”, uma dimensão de contato sócio-antropológico com a realidade exógena aos games analisados (Call of Duty: Modern Warfare 2, Call of Duty: Black Ops e Battlefield 3). Quando ditames exploratórios, parcela da categoria contemplativa da ação, dissecada por Luís Nogueira em Narrativas fílmicas e videojogos (2009), passam a exercer maior influência sobre o gameplay, como pode ocorrer em jogos open world, estamos diante de uma postura metodológica que nos fará enxergar o espaço periférico.

Periferia visual é um conceito da ótica. Portanto, as imagens de canto de olho são para o pesquisador indícios visuais que extrapolam os elementos privilegiados pela técnica renascentista da perspectiva, que nasce com a pintura e permanece na representação dos espaços tridimensionais navegáveis dos games contemporâneos. Some-se a isso a abordagem das teorias do cotidiano, que privilegiam aspectos banais, comuns, rejeitados pela ótica da macrossociologia e teremos então a união entre contributos técnicos e, simultaneamente, teórico-hermenêuticos. Definimos, portanto, o “espaço periférico”, identificado em alguns games, como um lugar mais ou menos delimitado (por vezes difuso), situado fora da rota principal que leva à progressão narrativa do jogo, o qual pode exibir marcas simbólicas extraídas do cotidiano, estocadas às margens das molduras “oficiais” da arquitetura visual dos games.

O próprio procedimento de navegação do jogador diante do game corresponde ao que Gunnar Liestol (apud GOSCIOLA, 2003, p.103) chama de “discurso decorrido”, ou seja, o percurso atualizado pelo jogador diante do todo, que seria o “discurso armazenado” na programação do game (o leitor atento verá que se trata apenas de uma atualização da dicotomia saussuriana entre língua e fala). A ideia da obra aberta, ou da não-linearidade da obra hipermidiática leva-nos a crer que somos donos do próprio nariz dentro do game, resvalando na mesma ilusão de liberdade que possuímos na vida cotidiana. Mas o game designer, o roteirista, todos olham por nós; a imagem percorrida já foi olhada antes e agora nos encara, tal como percebido por Foucault (1999) em sua análise crítica sobre o quadro As meninas de Velásquez.

Os games, assim como todo objeto técnico e tecnológico, possuem um ethos; marcas constitutivas dos sujeitos que os produzem, e têm algo a comunicar. Este estudo, fruto das pesquisas empreendidas no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPB, será publicado muito em breve, lançando novas contribuições ao campo e suscitando debates críticos e desdobramentos.


REFERÊNCIAS


FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

NITSCHE, Michael. Video game spaces: image, play and structure in 3D worlds. Cambridge: MIT Press, 2008.

NOGUEIRA, Luís. Narrativas fílmicas e videojogos. Covilhã: Labcom, 2008.

WOLF, Mark (Ed.). The medium of the video game. Austin, EUA: University of Texas Press, 2002.

domingo, 8 de abril de 2012

Guerrilha e espionagem em games de ação

  
Defesa da dissertação: "Guerrilha e espionagem em games de ação: o cotidiano simbólico de um avatar pesquisador interagindo no Brasil, Cuba e Iraque".

Dia 12 - 15h00
Sgt. Daniel Abath
Força Tarefa - Sala 111 - CCTA
João Pessoa, Brasil.