Toda obra ficcional exibe sempre a
mesma mensagem em seu frontispício: “esta é uma obra de ficção. Qualquer
semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais terá sido mera
coincidência”, um protocolo jurídico para possíveis “coincidências” que possam
ferir os direitos de pessoas, costumes e culturas. Apoiados nessa balela, que
pode convencer unicamente aos códigos inanimados das leis dos homens, os
criadores das obras (escritores, roteiristas, etc.) podem se valer das
realidades alheias para configurar ficções que acreditam ser puramente
ficcionais.
No entanto, os universos da ficção e da
realidade não se apresentam de forma tão unilateralmente oposta. O escritor e
educador Gustavo Bernardo (2002, p.82), especialista nas obras do filósofo
Vilém Flussser, afirma, inclusive, ancorado nas discussões do referido filósofo
que “... se houve um momento em que a ficção era somente uma vírgula dentro da
vida das pessoas, hoje parece que a vida tornou-se uma vírgula dentro do
parágrafo da ficção...”. Mas como dizer “ficção também é realidade” se a
afirmação de um termo é a negação antônima do outro?
A procura por significações ocultas nos
objetos artísticos é um importante meio de inquirir do objeto conjeturas a
respeito de sua intenção de realidade, o que descamba para as inúmeras
problemáticas da interpretação. Durante as décadas de 60 e 70, Umberto Eco
defendeu o papel do leitor como “produtor” de significados, muito embora a
crítica tenha entendido essa posição como uma licença ilimitada dada ao leitor para
a produção de leituras. Eco (2005, p.50) se pronunciou em sua própria defesa
demonstrando formas de limitação de tais interpretações, apontando algumas
leituras como superinterpretações, ou seja, leituras de elementos e
significados que não existem no texto ou que se contradizem diante do todo.
Para ler/jogar um texto/game, o
leitor/jogador precisa empreender uma “willing suspension of disbelief” (ISER,
1996), ou seja, uma suspensão voluntária da descrença, fazendo com que o
narrador cause em nós a reação de que os eventos estão acontecendo e,
simultaneamente, não estão. A posição do crítico (ou analista) de acordo com
Bernardo, deve ser a de suspensão da suspensão da descrença, mas sem pular o
primeiro nível: o analista precisa ter suspendido a sua descrença para não se
tornar funcionário da teoria e, ao mesmo tempo, suspender tal suspensão para
não reduzir a sua leitura a algo sem consistência teórica. Agregando o ler/jogar despretensioso a ferramentas teóricas
e à bagagem cultural individual, podemos vislumbrar horizontes conjeturais de
leituras possíveis.
Leituras intencionadas de RE6
A série survival horror Resident Evil, conhecida
por revitalizar o gênero terror para o universo dos games, nomeadamente a
partir da temática dos zumbis, vem jogando com alguns elementos de ordem
histórica e social através de personagens, enredos, espaços geográficos, entre
outros. Para termos uma ideia, na história de Resident Evil 5, penúltimo game
da série, o jogador assume o personagem Chris Redfield, ativista privado que
investiga uma pequena cidade africana, foco de contágio de um vírus denominado “Las
Plagas”, já mencionado em RE4. Muitas imagens e sequências do jogo, bem como a
própria localização geopolítica da trama, falaram a favor de um imaginário
racista. Imagens como a de homens negros arrastando uma mulher branca em dada
cena do jogo, além de detalhes dos espaços do cenário como excrementos, animais
em decomposição, etc., são aspectos que conduziram ondas de protesto
internacional contra o jogo. De acordo com o site “gamevicio.com”, em
entrevista à revista Computer Games Magazine, Mascahika Kawata, produtor do game,
afirmou: “Nós
[Capcom] não podemos agradar a todos. Estamos no ramo de entretenimento - não
estamos aqui para afirmar a nossa opinião política ou qualquer coisa assim. É
lamentável que algumas pessoas tenham se sentido ofendidas dessa forma.".
Parece
que confirmamos o aspecto de uma natureza da inimputabilidade dos objetos técnicos de
entretenimento digital, discurso próprio dos produtores/desenvolvedores de games. É
como se a natureza ficcional do jogo o eximi-se de qualquer responsabilidade
sobre supostas interpretações “errôneas”, desconectadas de um contexto
ficcional em que vale tudo. A nova do momento é a sequência de abertura de
Resident Evil 6 no cenário do personagem Leon S. Kennedy.
Imagem da Adam Benford, presidente dos EUA na trama. |
De
acordo com o enredo do jogo, estamos em junho de 2013, e o presidente dos
Estados Unidos, branco, de nome Adam Benford, decide revelar segredos a
respeito dos eventos de Resident Evil 2 (1998, Raccon City) a Leon e sua
parceira, Helena Harper. O local onde se encontram sofre um ataque
bioterrorista, implicando na infecção do presidente e no consequente sacrifício
do mesmo por Leon, uma cena de tensão, desapontamento e abominável desserviço
cívico por parte do personagem (Leon tem de matar o presidente para sobreviver
e salvar a companheira) – vide vídeo!
Dois caminhos de leitura da sequência: 1. Diante de um comparativo entre a data de lançamento
mundial do jogo (2 de outubro de 2012, o que antecede as eleições dos Estados
Unidos), e o tempo determinado na narrativa (junho de 2013) pode haver uma insinuação/desejo
de que o presidente dos EUA em 2013 fosse justamente o candidato branco (no
caso, Romney), ou 2. O ato de matar o presidente branco no game pode simbolizar
a derrota do candidato, o que, diante do drama e da comoção dos personagens
envolvidos na cena, sinaliza para um possível descontentamento referente a essa
derrota.
E
depois nos perguntamos: mas afinal de contas, será mesmo que esse produtor
tinha alguma intenção quando trouxe para o game esse presidente que deveria
morrer com uma bala na cabeça? John Searle (2002, p.8) responde: “A linguagem é
derivada da Intencionalidade, e não o oposto”. Na ficção e no entretenimento vale a máxima do Chaves,
em que tudo acaba acontecendo sem querer, querendo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERNARDO, Gustavo. A dúvida de
Flusser: filosofia e literatura.
São Paulo: Globo, 2002.
ECO, Umberto. Interpretação e
superinterpretação. Tradução MF.;
revisão da tradução e texto final Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
ISER, Wolfgang. A arte parcial: a
interpretação universalista. In: O ato
da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução Johannes Kretschmer.
vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1996. p.23-48.
SEARLE, John R. Intencionalidade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.