Diante do game como obra hipermidiática
não-linear, as condições de navegação impostas ao usuário/gamer nunca foram as
mesmas. No princípio eram os games baseados no verbo, em que cenários,
personagens e ações eram apresentados na tela como descrições textuais, e
deixavam a encargo do jogador, tal como nas narrativas literárias, o esforço em
construir a imagem mental dos espaços onde se desenrolavam os seus respectivos
eventos. E o verbo se fez pixel, tomando formas visuais gradativamente
superiores às antecessoras, reclamando novas funções éticas e estéticas.
Temos visto estudos como The medium of the videogame, de Mark J.
P. Wolf (2002), e o mais recente Video game
spaces, de Michael Nietsche (2008), que trabalham com o elemento espaço, o
primeiro tipificando-o no geral e o segundo abarcando as propriedades
perceptivas e de contato com outras linguagens, mas pouco se discute a respeito
do espaço como agenciamento de questões sócio-culturais da realidade, ou melhor,
do cotidiano. Em nosso trabalho dissertativo “Guerrilha e espionagem em games
de ação” percebemos a planta baixa dos ambientes de navegação dos games como
espaços de análise sociológica e antropológica.
Através de um percurso argumentativo
que passeia pela história da arte e pelas teorias do cotidiano, desenvolvemos o
conceito de “espaço periférico”, uma dimensão de contato sócio-antropológico
com a realidade exógena aos games analisados (Call of Duty: Modern Warfare 2, Call of Duty: Black Ops e Battlefield
3). Quando ditames exploratórios, parcela da categoria contemplativa da
ação, dissecada por Luís Nogueira em Narrativas
fílmicas e videojogos (2009), passam a exercer maior influência sobre o
gameplay, como pode ocorrer em jogos open
world, estamos diante de uma postura metodológica que nos fará enxergar o
espaço periférico.
Periferia visual é um conceito da
ótica. Portanto, as imagens de canto de olho são para o pesquisador indícios
visuais que extrapolam os elementos privilegiados pela técnica renascentista da
perspectiva, que nasce com a pintura e permanece na representação dos espaços
tridimensionais navegáveis dos games contemporâneos. Some-se a isso a abordagem
das teorias do cotidiano, que privilegiam aspectos banais, comuns, rejeitados pela
ótica da macrossociologia e teremos então a união entre contributos técnicos e,
simultaneamente, teórico-hermenêuticos. Definimos, portanto, o “espaço
periférico”, identificado em alguns games, como um lugar mais ou menos
delimitado (por vezes difuso), situado fora da rota principal que leva à
progressão narrativa do jogo, o qual pode exibir marcas simbólicas extraídas do
cotidiano, estocadas às margens das molduras “oficiais” da arquitetura visual
dos games.
O próprio procedimento de navegação do
jogador diante do game corresponde ao que Gunnar Liestol (apud GOSCIOLA, 2003,
p.103) chama de “discurso decorrido”, ou seja, o percurso atualizado pelo
jogador diante do todo, que seria o “discurso armazenado” na programação do
game (o leitor atento verá que se trata apenas de uma atualização da dicotomia
saussuriana entre língua e fala). A ideia da obra aberta, ou da não-linearidade
da obra hipermidiática leva-nos a crer que somos donos do próprio nariz dentro
do game, resvalando na mesma ilusão de liberdade que possuímos na vida
cotidiana. Mas o game designer, o roteirista, todos olham por nós; a imagem
percorrida já foi olhada antes e agora nos encara, tal como percebido por
Foucault (1999) em sua análise crítica sobre o quadro As meninas de Velásquez.
Os games, assim como todo objeto
técnico e tecnológico, possuem um ethos;
marcas constitutivas dos sujeitos que os produzem, e têm algo a comunicar. Este
estudo, fruto das pesquisas empreendidas no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da UFPB, será publicado muito em breve, lançando novas
contribuições ao campo e suscitando debates críticos e desdobramentos.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
NITSCHE, Michael. Video game spaces: image, play and
structure in 3D worlds. Cambridge: MIT Press, 2008.
NOGUEIRA,
Luís. Narrativas fílmicas e videojogos. Covilhã: Labcom, 2008.
WOLF, Mark
(Ed.). The medium of the video game.
Austin, EUA: University of Texas Press, 2002.