sábado, 16 de abril de 2011

Mais do mesmo: games e violência





Colorado (EUA), abril de 1999 – Dois estudantes da Columbine High School entram na escola portando quatro armas pesadas e dezenas de quilos de explosivos. Os números: quinze mortos (incluindo os dois atiradores suicidas) e vinte e quatro feridos.

Brasil, novembro de 1999 – Estudante de medicina saca uma submetralhadora num cinema de shopping paulista, matando três pessoas e ferindo outras cinco. Julgado em 2004 e condenado a “120 anos de prisão”, supostamente teria citado que jogava Duke Nukem 3D, game de tiro em primeira pessoa que apresenta um cinema em uma de suas primeiras fases.

Alemanha, março de 2009 – Jovem mata nove alunos e três professores na escola Albertville. Na fuga, alveja e leva a óbito mais três pessoas, matando-se ao ser encurralado pela polícia.

Brasil, abril de 2011 – Sem comentários!


Os mais variados setores da sociedade, incluindo a mídia, ainda não cansaram de tecer as mais absurdas acusações, fundamentadas nos princípios da moralidade e dos bons costumes, acerca das supostas influências dos games de violência sobre crianças e adolescentes no mundo. O fato comum a todos os eventos acima mencionados é justamente a especulação em torno de que jogos de temáticas violentas teriam levado os criminosos a praticarem suas execuções explicitamente patológicas.

Cena do jogo GTA IV
Essa semana, em matéria do portal O Globo, atribuiu-se a Wellington Menezes a predileção pelos jogos eletrônicos, especialmente GTA e Counter Strike, ou seja, mais do mesmo. E como se não bastasse, o despautério continuou no twitter com pedidos de RT, pelo bem da nação, aos que não gostavam de games violentos e armas. As mensagens chegam, inclusive, a comparar os jogos com as armas de fogo e deixam bem claro o padrão de gosto de quem redigira a notícia.

Talvez o jornalismo seja o único ofício em que um empregado não é demitido pelo trabalho mal feito. Médicos esquecem bisturis, engenheiros incorrem em fissuras nos prédios, mas e os jornalistas? Nada pesa sobre nós quando reproduzimos preconceitos, ideias estereotípicas e informações articuladas com base no achismo, ou no gosto? Quem paga pelo erro é a própria sociedade, que repete o ramerrão da mídia, refletindo padrões tendenciosos e deixando escapar as reais injunções envolvidas nos problemas diários.

É possível, caros leitores, conceber em sã consciência a causalidade de um fato tão isolado, e ao mesmo tempo tão violento, a meros artefatos midiáticos de entretenimento? Uma arma sozinha pode disparar contra alguém de cima de uma mesa? Se pensarmos dessa forma, o fato de termos facas em nossas casas nos qualifica como assassinos potenciais, já que a faca é uma arma branca. Essa é uma discussão démodé que teima em se fazer presente nos discursos dos pseudo-moralistas e dos irresponsáveis para com a informação pública.

De onde vem a violência?

Violência é um tema complexo. Apontar um game como a pedra angular das motivações individuais de um assassino à execução de crimes é um dos maiores acintes contra a racionalidade de um leitor/ouvinte/espectador. Nem os aspectos sociais, econômicos, políticos, culturais, genéticos, etc., podem explicar isoladamente a motivação macabra para atos dessa magnitude. O conjunto dessas variáveis é que pode sinalizar para pistas substanciais quando de um cruzamento e de uma análise sistêmica, complexa.

Com certeza esses jornalistas nunca tiveram contato com a teoria freudiana dos instintos, a qual aponta como inerentes aos sujeitos as pulsões de vida (Eros) e de morte (Tanatos). Ou seja, não foi qualquer mídia que inoculou no assassino, motivações criminosas espontâneas: nós já nascemos com isso. Fato é que o Coliseu romano já entretinha multidões com espetáculos catárticos de sangue. Em última análise, quando o indivíduo opta pela violência está no caminho do seu próprio instinto de destruição.

O estigma não é privilégio dos videogames. Todas as vezes em que surge uma nova mídia, muitos são os ataques e o sentimento de aversão por parte das formas tradicionais. Foi assim com a pintura, a fotografia, o cinema, o rádio e a TV e, agora, é a vez do game. Por que os videogames trabalham com representações fortes de violência física? Então temos de combater também os filmes, inclusive os nacionais, como Tropa de Elite ou Amarelo Manga, cada vez mais requintados quando o assunto é violência.

A influência parte exatamente dos elementos exógenos. Não é o jogador que imita o avatar, mas o contrário. As narrativas refletem um zeitgeist muito nosso. Claro que se trata de uma obra fictícia, mas nada surge do nada. O game designer não trabalha na base da iluminação ou das revelações, como o fazem os líderes religiosos, mas com dados da sua cultura. Como vivemos tempos de violência, o que se pode esperar dos nossos artefatos? Flores? Hipocrisia? Ou a denúncia de condutores fascistas, como aquele do atropelamento de inúmeros ciclistas em um ato público, na tela de um GTA? A arte imita, e muito, a vida.

O que a mídia não divulga o coração não sente

Capa do jogo Manhunt, proibido
em mais de 50 países

Não podemos esquecer, igualmente, do fator terapêutico e do consequente efeito de anodinia promovido pelos games. A contemplação da violência, ao invés de incitá-la no ambiente exógeno, funciona como uma terapia, ou seja, matamos no espaço narrativo do jogo, externamos nosso instinto de destruição, liberamos as tensões do nosso cotidiano pela válvula de escape videogame para não cometermos tamanhas atrocidades em nossa vida cotidiana. Com isso, tornamo-nos anódinos, ou seja, acostumados com tais cenas violentas, canalizando por completo a ansiedade e os instintos destrutivos.

Porque jogar é assumir um espaço-tempo fictício; é assinar um contrato de interação com data e hora marcadas, em que sentar para um bom game produz a mesma “ordem de discurso” acessada quando adentramos as salas de cinema, fazendo-nos crer que ali se trata de um faz-de-conta. A faca tanto pode cortar uma lasca de queijo quanto perfurar os pulmões de alguém, pois nenhum instrumento tecnológico ou midiático é considerado naturalmente bom ou mal: trata-se dos usos aos quais nos propomos com eles.

Poderíamos aqui falar de influências muito mais prejudiciais aos indivíduos, como as religiões, estas tomadas como verdades imutáveis, inquestionáveis e anti-racionalistas. Basta lembrarmos do mito judaico-cristão de Abraão, incitado a sacrificar o próprio filho em nome do seu Deus, ou das práticas terroristas de suicídio religioso, com promessas de virgens e prazeres nas dimensões de além-túmulo.

Porque isso sim é real: o fundamentalismo, a fé inquestionável em mitos arcaicos, ressignificados com base em tantas outras mitologias d’outrora. Essas são algumas das influências palpáveis no espaço da vida cotidiana, que fazem com que hordas de fiéis entreguem patrimônios e vidas nas mãos de verdadeiros assassinos. Pena que essa violência simbólica, como tantas outras, não deixe as marcas visíveis, o sangue estampado e toda uma sociedade perplexa, tal como fazem quando jovens platonicamente canalizam seus anseios e frustrações em seres de pixel.

P.S.: Fiquemos com um pouco da real violência das instituições através de um vídeo de “Jesus Camp”, documentário norte-americano sobre o adestramento doentio de crianças ao culto de Cristo.

domingo, 10 de abril de 2011

Eu, aplicativo?!


Já não conseguimos suportar um dia sem falar ao celular, sem ligar uma TV, sem jogar um bom game ou mesmo acessar o nosso perfil em uma das inúmeras redes sociais do mundo digital. O que tem acontecido conosco numa era em que as “novas” tecnologias estão cada vez mais imbricadas em nossas vidas? Aumento da individualidade e diminuição nos níveis de socialidade? Uma coisa é certa: implicações culturais e mudanças comportamentais certamente fazem parte do cotidiano do século XXI.

Jaron Lanier
Jaron Lanier (cientista da computação, artista visual e um dos idealizadores da realidade virtual) possui uma visão peculiar dos indivíduos frente aos novos media. Em seu recente Gadget! Você não é um aplicativo, defende que as questões da área das humanidades estão sendo cada vez mais projetadas por softwares, apontando que a web 2.0 possui uma concepção digna de desprezo, promovendo a aplicação da liberdade muito mais às máquinas do que aos usuários. Partindo de um especialista no assunto, os ataques até que soam convincentes.

Você se considera um troll?

Dentre as concepções apocalípticas, o integrado Lanier ressalta que tanta liberdade virtual contribuiu para o crescimento de comportamentos agressivos nas pessoas, refletidos em fóruns de discussões e redes sociais. Quem nunca topou com comentários no Youtube do tipo: “Vai tomar...” ou “Que lixo! Maldita inclusão digital”? Pois bem, os artífices de tais pérolas são denominados por Lanier como trolls, ou seja, indivíduos que adentram as redes para plantar as sementes da discórdia.

Os games online também se configuram como portas de entrada das manifestações desses comportamentos traduzidos em discursos. Os trolls, não os personagens próprios dos Role Playing Games, mas nós, indivíduos protegidos pelo anonimato dos usernames e dos falsos perfis, sugerem estudos e análises voltadas para as causas dessas manifestações e suas implicações durante o jogo.

Pensando as mídias

De acordo com o autor, a modificação de um mínimo detalhe na interface de uma mídia, como a função de um botão, pode alterar totalmente as reações e a padronização comportamental do usuário. Isso sinaliza para uma responsabilidade inerente ao tecnólogo no sentido de pensar a sua criação, como afirma Lanier (2010, p. 19):


Nós, os inventores das tecnologias digitais, somos parecidos com comediantes ou neurocirurgiões, no sentido de que nosso trabalho ressoa com profundas questões filosóficas; infelizmente, temos mostrado há algum tempo que somos péssimos filósofos.

 
A grande mensagem da obra remete à reflexão sobre as mídias contemporâneas como uma tarefa que exige muito mais do que um mero conhecimento técnico, amparado em ferramentas utilitárias e muletas em néon. A análise crítica das tecnologias deve partir de um conhecimento interdisciplinar, próprio da grande área da comunicação e apto a construir discussões complexas para objetos idem. Afinal, o conhecimento ainda não pode ser transmitido de forma intravenosa ou baixado por meio de gadgets.


Referência bibliográfica

LANIER, Jaron. Gadget! você não é um aplicativo: um manifesto. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Saraiva, 2010.